Quase Por Acaso Um Emigrante
de João França
de João França
Temporada artística
1994/1995
Encenação
Eduardo Luíz
INTÉRPRETES E PERSONAGENS
Norberto Ferreira | Rique
Márcia das Dores | Mãe
Magda Paixão | Mariquinhas
Mário Bettencourt | Crispim
Patrícia Perneta | Vendeira
Ficha Artística e Técnica
Encenação e Direcção Artística | Eduardo Luíz
Assistência de Encenação | Duarte Rodrigues
Direcção de Cena | Patrícia Perneta
Contra-regra | Magda Paixão
Iluminação | Hélder Martins
Ajudante | David Ferreira
Sonoplastia | Henrique Vieira
Caracterização, Cartaz e Programa | Miguel Vieira
Execução de Guarda-roupa | Mirita Coelho e Rita de Sousa
Carpintaria | Sérgio Rodrigues e Nélio Vieira
Produção | Pedro Cabrita
Assistente | Patrícia Perneta
Música extraída de Cantares e Música da Madeira
Sinopse
“Bom vinho prometia o Setembro nas terras do Crispim Americano, lá nos Canhas. Regalo para os olhos da gente que eram os cachos envernizados pela maturação das uvas gordas de sumo, umas de cor de topázio no doce cacho do boal, do verdelho ou da malvazia; outras de um violeta-escuro das americanas, da tinta e do jaqué. Ajoujavam as latadas no terreiro e grande parte da fazenda do emigrante regressado das Américas ao chão da Ponta do Sol.
Começara o afã da vindima, com essa alegria habitual dos vindimadeiros, de certo modo profissionalizada. Homens, mulheres, rapazes e raparigas atiravam-se à tarefa, mãos armadas de podoa em forma de tesoura de mola, a cabeça coberta de chapéu de palha, barrete de orelhas ou lenço enramado. Abaixo dos braços alçados, de manga arregaçada, esticavam-se corpetes presos a saias de algodão e camisas de linho grosseiro metidas em calças de serguilha parda. Bem poucos os pés se premiam na bota chã, como também de poucos homens se escutava palavra, não porque estivessem enfadados, mas por ser assim o feitio natural do trabalhador de fazendas: fala pouco, questiona menos, produz mais e mantém-se ordeiro, com a graça de Deus. Mas não lhe pisem os calos, não o enganem. Raro é não ferver-lhe o sangue na fogueira das injustiças, não as injustiças sociais, dado que parecia não dar por elas, mas as injustiças morais, do homem para homem, com relevância para dignidade da alma. A esse respeito não tinham os trabalhadores razão de queixa de Crispim Americano: contratava, não ficava a dever, não era pessoa para insultar outra nem tinha risos sem propósitos. Poder-se-ia dizer um homem sério.
Dos contratos fazia parte o moço Rique Brás, também conhecido por Brasinha do Paul da Serra, lá na casa de Judas, salvo seja! Certamente, diria ele não ter nascido nesse planalto onde ninguém nascia, a não ser por acaso, com excepção das crias de cabra e de ovelha, ali a pastar. Mas não podia negar a sua vinda ao mundo no sopé da colina deserta, bem no fundo-norte da Ponta do Sol, isso há vinte e dois anos. Órfão de pai, vivia para a mãe, para a sua pequena casa de coimo mais a nesga de terra arável diante da porta. Sempre trabalhara nas coisas da agricultura e da pastorícia, sem contar com os dezoito meses perdidos a marcar passo na tropa. Tal como o pai e os avós, também ele subira ao Paul, a riba da casa paterna, com rebanhos que não eram seus, mas nunca se vira embeiçado por esse trabalho; preferia a fazenda de trigo ou o canavial, que eram pão e açúcar; também as vindimas, os carretes do mosto, a vigia das levadas, tudo, menos a pasmaceira de pôr animais a comer erva.
Era a segunda vez a ter contrato na fazenda do Americano, ali com casa de telha, grandes poios e família constituída, da qual sobressaía, aos olhos do Rique, a Mariquinhas, filha única do fazendeiro, uma trigueirinha de olhos negros e sorriso de pasmar. Com ela sonhava ele enquanto trabalhava, e trabalhava sem perder a ocasião de ser prestável àquela jóia de carne e osso, também de podoa na mão e cesto na curva do braço.
Para o Rique, tudo era prazer naquela vindima, graças ao sorriso da Mariquinhas…”
Do Romance O Emigrante de João França